sábado, 26 de fevereiro de 2011

O CISNE NEGRO

Visto da plateia o balé é perfeição. Einstein, por exemplo, dizia que os bailarinos são atletas de Deus. Já nos bastidores, nos camarins, nos ensaios, nos castings, o balé é um universo de uma disciplina muito além da militar, dos corpos e mentes levados ao limite, dos pés destruídos e deformados, das múltiplas contusões e distensões, da anorexia, da extrema competitividade, dos ódios e intriga. É um mundo operático. São essas duas facetas gémeas da dança que Aronofsky capta no seu último filme. Claro que o bailado escolhido é o ‘Lago dos Cisnes’, já que essa história versa sobre um cisne branco puro e um cisne negro traidor, habitualmente representados pela mesma bailarina.
PAS-DE-DEUX
Assim, ‘Cisne Negro’ tinha que ser o que é: um filme de encantamento-terror. Se assenta em alguns clichés, com uma companhia de bailado de repertório previsível, um director conquistador de "princesinhas" e corredores de rivalidades aguçadas, esta longa-metragem capta a dualidade da dança. ‘Nina’, a bailarina escolhida para tanto ser luz como trevas, uma verdadeira máquina de dançar, trava um pas-de-deux bélico com ela própria.
Como cisne branco pode continuar a ser uma bailarina de uma caixa de música, exacta e neutra. Para advir cisne negro tem que resgatar a sua humanidade. Mas este paradoxo não é exclusivo do ‘Lago dos Cisnes’, atravessa toda a dança clássica. Rigor e exigência são mais absolutos do que em qualquer desporto de alta competição. Como se não bastasse, tudo tem que parecer leve, espontâneo, natural, como qualquer arte de representação. E assim, cada vez que executa mais uma pirueta, a estrela da companhia dá mais uma volta na sua própria espiral. Dá mais um passo para a vertigem do belo.
O ‘Cisne Negro’ resulta porque dança sobre as cabeças dos espectadores, sobre alguns medos universais, como o de enlouquecer, o de desfiguramento ou o da perda de capacidades.
Enquanto o cinema é ilusão de movimento, a dança faz do movimento uma arte. Mas poucos filmes a trataram com dignidade. As excepções que existem pressentem-se nesta longa-metragem, que tem a tragédia de ‘Red Shoes’ (Michael Powell) e o caleidoscópio exuberante das coreografias dos musicais de Bubsky Berkley.
Aronofsky filma com minúcia espelhos e reflexos de reflexos. Movimentos e gestos. A câmara respira ofegante e levemente, sempre à procura do melhor ângulo, do melhor pormenor. Mas o ritmo da montagem evita o hipnotismo corpóreo da dança. Antes procura a trepidação dum ataque epilético. Trata-se de uma fita que caminha para a convulsão, tal como o estertor da bailarina no auge da carreira, exemplarmente interpretada por Natalie Portman que se confunde com a personagem, numa mutação "ao vivo".
É só pena que ‘Cisne Negro’ seja um bom filme. Porque, como sabem todas as prima- bailarinas, o bom é inimigo do óptimo. 

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