sábado, 26 de fevereiro de 2011

O nosso amigo Kadhafi

 
 

Ditaduras de décadas jazem em semanas. Kadhafi, esbaforido, ameaça morrer a matar - mas está a cair.
Nós, os da democracia, estamos maravilhados com o fim dos ditadores. Mas eles são também os assassinos a quem apertámos as mãos, não o pescoço. Democracia rima com economia - e ambas rimam com hipocrisia. Como será agora?

Depois da Tunísia e do Egipto, a revolta segue na Líbia, que pode, aliás, fazer ricochete para o Egipto e para a Tunísia e que contaminará caminhos libertários noutros países. A Líbia está à beira do caos duradouro, receia-se que sangrento, até porque não é um país unificado.

Os líderes ocidentais exibem a consternação dos grandes estadistas mas estão mais preocupados com o preço do petróleo do que com o do sangue. Sempre estiveram. Sim, o sangue também tem preço e já foi transaccionado. Por quem? Por esses ocidentais. Por nós. Com Kadhafi.

José Sócrates foi apenas mais superlativo na falta de decoro quando recebeu Kadhafi como quem recebe o Papa e visitou, e mandou visitar, a Líbia para os festejos do ditador. Ainda na semana passada o embaixador português em Tripoli dizia a este jornal que o dia da raiva era "perfeita invenção. Não há semelhante coisa aqui!". Os amigos são para as ocasiões.

Quem entronizou Kadhafi não foi Sócrates, foi a União Europeia, que não se inquietou em fazer negócios com gente que negoceia com o revólver poisado na mesa. O pavoroso massacre do Lockerbie, que matou 270 passageiros, teve um mandante identificado, que foi julgado pela Justiça britânica: Kadhafi. Esse assassínio foi trocado por petróleo. Por isso, ouvir Obama há dois dias dizer, jactante, que os direitos humanos não se negoceiam convoca a náusea.

Esta democracia ocidental, esta Europa, estes Estados Unidos, vivem e prosperam com as ditaduras. O silêncio da UE nos últimos dias tem sido uma humilhação bastante audível. A mesma Itália que está em pânico com o êxodo que lhe vai desaguar nas margens domina interesses petrolíferos na Líbia, na nossa bem conhecida Eni. Que moral há em quem fecha os olhos ao genocídio no Darfur, quem tolera a calamidade humanitária no Sudão, quem suporta até a pirataria no Índico?! Petróleo por armas por sangue por consciência.

O curso histórico a que estamos a assistir - que estamos a viver - é impressionante e imprevisível. África está a mudar de era e a mostrar que o mundo multipolar que se seguiu à bipolaridade EUA--URSS será uma estrela com mais pontas do que se supunha. Porque esta revolta, que se propaga imparavelmente pelas tecnologias e redes sociais, pode não ficar sequer pela região e descer para África subsahariana. Onde estão, aliás, outros ditadores com quem fazemos negócios.

Foi no seu livro-quintessência "Os Sete Pilares da Sabedoria" que T.E. Lawrence (o "da Arábia") escreveu o excerto que se tornaria célebre: "Todos os homens sonham, mas não da mesma forma. Os que sonham de noite, nos recessos poeirentos das suas mentes, acordam de manhã para verem que tudo, afinal, não passava de vaidade. Mas os que sonham acordados, esses são homens perigosos, pois realizam os seus sonhos de olhos abertos, tornando-os possíveis." Nós, que rejubilamos pelo que cai e receamos pelo que se levanta, o que queremos é sossego e petróleo barato. Ou será que, como eles, estamos dispostos a mudar - e ser também a revolta contra o negócio com assassinos, mesmo quando não somos nós os assassinados?

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